“Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1994, p. 2).
A preocupação com a disseminação da Covid-19 trouxe a suspensão das aulas em todas as escolas de Belo Horizonte, desde o dia 18 de março de 2020.
A escola fechou. A comunidade escolar está em casa. E a sala de aula passa a ser a casa do/a estudante. O que significa esse cenário?
Mães, pais, avós, tios, primos são os/as companheiros/as dos/as nossos/as estudantes nos estudos diários propostos pela escola. São as pessoas que, cotidianamente, conectam os/as estudantes ao mundo e, também, à escola. São os/as maiores influenciadores/as, os/as árbitros/as das situações vividas, os/as informantes, os/as apoiadores/as, que traçam caminhos para o futuro e delineiam projetos de vida. Mas, isso é diferente do que já existia antes da Covid-19? Não. Mas, de repente, essa realidade ficou mais clara para nós. Diferentemente do que enxergávamos na vida escolar presencial, precisamos, agora, considerar, necessariamente, que nossos/as estudantes vivem em núcleos familiares dinâmicos, vivos, que interferem na forma como pensam, sentem e vivem a escola e sua dinâmica.
Isso significa que nossos/as estudantes estão, hoje, totalmente dependentes do seu próprio grupo social e nós, profissionais da escola, precisaremos nos esforçar para entrar na casa deles. Se possível, sendo amados/as, desejados/as e queridos/as.
Família e Escola são instituições complementares na perspectiva da formação para a cidadania. Complementam-se como influenciadoras dos rumos que os sujeitos seguirão no desenrolar de seus percursos e de suas trajetórias escolares. Assim, a escola pode (re)significar os projetos de vida das pessoas, quando aprendizagens novas sinalizam e abrem horizontes também novos. Nesse sentido, o ofício de estudante se constrói nesta complementaridade de referências - família e escola. O desejo e o gosto pelo novo que o conhecimento descortina, o gosto por estudar mais, o hábito por desejar novas aprendizagens serão adquiridos nestas interações entre estudante/família/escola.
Ora, ser professor(a) é um ofício centrado na observação da vida de nossos/as estudantes e nas interações que estabelecem com outros/as estudantes e com os ambientes de aprendizagens. Ou, falando de outra forma, o/a professor(a) é um/a observador/a do processo de desenvolvimento do ser humano e da sua trajetória na aquisição dos conhecimentos. Nesse contexto, o/a professor(a) define intencionalidades, estimula, motiva, promove a aquisição de novos conhecimentos, favorece aprendizagens. É assim que o/a professor(a) passa a fazer parte da vida do/a estudante e a fazer parte da sua família.
Perrenoud (1993, p. 157) disse que “formar professores significa prepará-los para observar, decidir e agir em situações, tendo em conta o conjunto dos constrangimentos que caracterizam a ação pedagógica numa sala de aula”. Entretanto, hoje, o maior constrangimento de um/a professor(a) está no fato de não ter a escola como o lugar onde possa realizar o seu trabalho. Estamos precisando das famílias e de seus lares para poder trabalhar. Precisamos chegar, visitar, ser convidados/as, com carinho, para fazer parte da vida daqueles/as que são a razão de ser do nosso trabalho. Hoje, crianças e adolescentes, jovens e adultos das nossas escolas estão nas suas próprias casas e precisaremos conviver com todos/as que lá estão, conviver com toda a família do/a nosso/a estudante.
Mas, será possível, neste contexto de isolamento social, quando tudo se modifica, que o processo de escolarização fora dos muros da escola aconteça? Qual é o sentido da relação pedagógica professor/estudante/conhecimento nessas circunstâncias? Será que tudo pode acontecer como se apenas mudássemos de casa? Quem é a autoridade do conhecimento? E se a cultura nos lares de nossos/as estudantes tomar como pressupostos outras bases ideológicas para lidar com o conhecimento do mundo, que não a ciência? Qual é o conhecimento necessário neste momento? Quais os ensinamentos deste novo tempo?
Perguntas difíceis e complexas exigem respostas também complexas. O mundo ficou de cabeça para baixo. E não podemos ignorar a realidade, negar que tudo está diferente. No início da pandemia, médicos/as e profissionais da área da saúde diziam, a todo instante, que estavam aprendendo com a doença. Confessaram que ninguém tinha certeza sobre o que daria certo ou errado para lidar com o vírus. Havia incertezas sobre qual medicamento, qual procedimento médico utilizar. Tiveram que experimentar, inovar! Estão estudando muito, criando grupos de trabalho em parceria com profissionais que atuam em contextos diferentes, em países diferentes, em sintonia, em colaboração. Muito trabalho, muita luta, muita ansiedade.
Na verdade, todos/as nós estamos aprendendo. O mundo inteiro está aprendendo e o conhecimento está no ar! Todos/as somos aprendizes e vulneráveis. Qualquer metodologia é experimental. E, daqui a 20 anos… vão nos estudar. Vão analisar nossas ansiedades, medos, inseguranças e decisões em busca das respostas.
Mas, uma coisa está muito clara: ninguém consegue vencer uma pandemia e suas consequências solitariamente, mesmo com o distanciamento social. Se a nossa alternativa é entrar nas casas de nossos/as estudantes, precisamos fazer isso. Precisamos pedir licença para entrar. Reconhecer a importância de tentar estabelecer um diálogo franco com a família, com a sua realidade e sua condição sociocultural e material de vida.
Trabalhar coletivamente, estudando junto, procurando respostas em vários lugares e com várias referências, é fundamental. E mais, reconhecer que essa atitude é prioritariamente uma atitude científica e responsável, que revela o cuidado e a empatia com o próximo. Assumir os novos tempos também é uma atitude fundamental. O avanço das tecnologias digitais estão nos permitindo construir infinitas conexões, para que o diálogo se estabeleça e que esse isolamento seja, especificamente, físico.
Comênio, o pai da Didática, ainda no século XVI, dizia que a Didática é a arte de ensinar tudo a todos, conforme reitera Ferrrari (2008). Como podemos interpretar isso? Arte! Ensinar tudo! Ensinar todos!
Pode-se entender o autor como um incentivador da atitude científica a favor da democratização do saber. Em sua conceituação, apresenta um método, uma perspectiva e um posicionamento político. Isto é, um(a) professor(a) deve exercitar, permanentemente, a ação de indagar, de formular questões acerca do fazer docente, numa constante busca por soluções. É preciso buscar alternativas diversas para realizar as interações com as pessoas e o mundo, porque a arte busca formas diversas de comunicação e porque ensinar é um processo de comunicação por natureza, assim como a arte. Sabe-se, entretanto, que o(a) interlocutor(a) é sempre diferente e isso exige o uso de diferentes formas para atingir quem é diferente por natureza. A dimensão democrática de Comênio está na certeza e no desejo de que todas as pessoas podem aprender, dependendo de como um(a) professor(a) exercitará a sua arte de ensinar.
Relembrar Comênio, em plena pandemia, é importante porque o desafio trazido pela Covid-19, que não nos deixa abrir escolas e exercitar nossa didática nas salas de aula, nos diz que, mais do que nunca, é preciso ter clareza e consciência de que nossas ações se constituem pelas intencionalidades pedagógicas. Se estamos longe e desejamos interagir, por meio desse processo de ensino híbrido, precisamos, como sempre, nos perguntar: o que vamos ensinar? Por que devemos ensinar? Como vamos ensinar? Quais limites o ensino híbrido nos impõe? Quais possibilidades pedagógicas e didáticas ele nos apresenta? Precisamos e vamos pensar coletivamente essas possibilidades, para viabilizar as melhores propostas de ensino para os(as) nossos(as) estudantes, nesse contexto pandêmico.
Estamos diante de uma situação inusitada, em que as desigualdades socioeducacionais nos desafiam no exercício de nossa profissão. Assim, na nossa ânsia de exercitar a arte de ensinar, precisamos ter clareza de alguns pontos: até que ponto se estende o poder da nossa vontade, do nosso desejo, de nossa consciência? Até onde vai o alcance da nossa liberdade? O que está inteiramente em nosso poder? O que depende inteiramente de causas e forças exteriores que agem sobre nós? O que fazíamos pode voltar a ser feito? O que dava certo numa sala de aula, no interior de uma escola, pode dar certo na casa do(a) estudante, sem a mediação do(a) professor(a)?
O desenvolvimento profissional docente é um processo holístico, presente nos princípios da Educação Integral. Precisamos pensar nas diferentes dimensões que fazem parte do ser humano (física, social, emocional, ética, estética, cognitiva, econômica), nos valores que emergem das nossas práticas e rotinas usuais, para compreendermos os limites do que fazemos e acreditamos. No ambiente escolar, tínhamos condições de desenvolver atividades complexas próprias da materialidade do entorno, mas o que fazer quando o entorno é a casa do(a) estudante? O(a) estudante e sua família esperam de nós o exercício da profissão docente e também estão desafiados em seus ofícios de ser estudante ou de ser mãe ou pai desse(a) estudante. A casa do(a) nosso(a) estudante também está desafiada a acolher esse novo processo de interações, abrindo-se ou não ao que nunca viveu e sem condições, muitas vezes, de enfrentar o desafio. Ou sentindo medo de enfrentá-lo, assim como nós.
A formação docente passa pela experimentação, pela curiosidade, pela inovação, pelo ensaio de novos modos de fazer. Tomando como exemplo os profissionais da área de saúde, que reconheceram que estão aprendendo a cada dia sobre a Covid-19, também nós, profissionais da educação, precisamos reconhecer que o grande desafio do momento exige, mais do que antes, consciência das dimensões coletivas do fazer pedagógico. Precisamos assumir, sem preconceitos, as produções e práticas que estão dando certo e que estão sendo experimentadas por outros(as) colegas profissionais do ensino. Vivemos, com certeza, o tempo da predominância do trabalho em rede.
Refletir, estudar, planejar e propor é preciso. Fazer um plano exige refletir sobre nossos desejos profissionais, sobre as necessidades educativas de nossos(as) estudantes. Exige, também, antever e projetar resultados dos processos educativos. E, neste momento, o desafio que nos move é reconstruir a nossa profissão e nossas propostas de trabalho, a partir de novos caminhos, novas aventuras, novos planos, novos lugares, novas tecnologias.
Planejamento é uma atividade consciente e política, porque planejamos para um objetivo e para alguém. É um ato decisório, orientador de ações e tradutor de aspirações. Um plano é uma ação comprometida, que envolve análise da situação, definição de necessidades e objetivos, delineamento do que vai ser feito e compromisso com o que acontecerá após a realização do que foi proposto. Exige a crítica e a autocrítica do que foi planejado, tendo como referência o que, efetivamente, aconteceu. Todo plano dialoga com seu processo de avaliação. A avaliação é uma tarefa de rotina, por meio da qual nos comprometemos a refletir sobre os acertos e desacertos de nossos planos de ensino, visto que resultados e processos se complementam no entendimento da realidade. Isto é, a avaliação começa com o conhecimento de resultados de ações anteriores e se concretiza quando produz informações sobre os processos implementados para o alcance dos referidos resultados e ajuda a tomar decisões futuras, para melhorá-los. Assim, podemos dizer que a avaliação é como um aval para novas ações.
Então, é isto: estamos diante do novo. Mas, estamos abertos para enfrentar o novo? Estamos nos preparando para conquistar um novo tempo possível? Conquistar uma nova escola, um(a) novo(a) profissional da educação, um novo ofício de estudante e um novo espaço de interações com as famílias dos(as) estudantes?
Não partimos do pressuposto de que estamos vivendo um ano perdido para a educação. Não partimos do pressuposto de que teremos a tragédia anunciada de uma geração sem preparo. Ao contrário, consideramos que todo o planeta está vivendo experiências dramáticas, mas aprendendo muito com tudo isso. A importância do meio ambiente na alteração das condições de vida na terra e os desafios da degradação ambiental na proliferação de doenças é um conhecimento essencial e está às claras para o mundo. Como deixar de considerar tudo isso quando se pensa a educação de uma nação, de um povo e de uma cidade? Como não considerar que o ser humano, seja criança, adolescente ou adulto, aprende a todo momento, por meio das interações que realiza com o ambiente, com as pessoas e com o contexto de informações, conhecimentos e práticas sociais com os quais é desafiado a interagir, imitando-o, assistindo-o e a ele se habituando?
O contexto social nos molda e constrói hábitos e mentalidades necessárias ao bom convívio. Assim, se crianças e adolescentes das nossas escolas não aprenderam, sistematicamente, os conteúdos escolares previstos para serem ensinados pelas práticas pedagógicas escolares do ano de 2020, aprenderam, por outras formas, inúmeros outros conteúdos, relativos às modificações vividas no cotidiano de seus lares e de suas famílias. Precisaremos descobrir o que aprenderam. Essa será a nossa primeira tarefa. Redescobrir quem são os(as) nossos(as) estudantes nesses tempos de pandemia. Entender o que viveram e o que aprenderam longe de nós.
É certo que ainda não poderemos estar juntos, abraçados, convivendo, como antes, nas escolas. Entretanto, é importante acreditar que já amadurecemos o suficiente para enfrentar uma nova fase nesta pandemia: a fase de construção de uma relação pedagógica sistemática com os(as) estudantes, mediada por intencionalidades explícitas, objetos de conhecimentos essenciais e atividades propostas com o intuito de dialogar com aquilo que o(a) estudante aprendeu ou está em processo de aprendizagem. Mediados por tecnologias digitais ou analógicas, técnicas de ensino e didáticas, teremos que exercitar, com certeza, a arte de ensinar tudo a todos, porque somos profissionais do ensino.
Apresentaremos, neste livro, os eixos daquilo que está pensado e proposto como prática pedagógica escolar nestes tempos de pandemia, mas é importante salientar que o que reunimos é fruto de muitas conversas, com diretores de escolas, professores(as) da Rede Municipal de Educação das diferentes áreas e segmentos, professores(as) das instituições de ensino superior que nos assessoraram nos debates sobre as questões curriculares, ideias apresentadas em lives assistidas e apreciadas e experiências retiradas de outros países ou de municípios brasileiros. Não estamos preocupados com a originalidade da proposta, mas estamos atentos à sua efetividade, considerando os formatos a serem criados pelas escolas em seus roteiros de trabalho; o uso de tecnologias e técnicas de ensino que realmente ensinem; os objetos de conhecimento essenciais que devem ser ensinados; o apoio ao(à) estudante e o cuidado com a sua formação escolar, além da qualidade das interações entre escola/família/estudante.
Colocamos como eixo central a defesa da construção de um Mapa Socioeducacional nas escolas, porque estamos focados nos sujeitos aprendizes da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e nos desafios que um contexto de pandemia trouxe. Perguntas incessantes e diárias devem ser feitas: como acompanhar os(as) estudantes diante do isolamento social e da impossibilidade de frequência à escola? Como chegar nesse(a) estudante e como atingi-lo(a) naquilo que é fundamental, como o acesso aos direitos de aprendizagem para um percurso de escolarização de sucesso?
Nessa linha de raciocínio e desejando oferecer às escolas uma proposta pedagógica sólida, fundamentada na realidade e com possibilidades de um atendimento cuidadoso e personalizado, esta proposta pedagógica para a Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte partiu de três eixos básicos, na perspectiva de orientar as práticas pedagógicas dos professores, das escolas e da gestão da educação na cidade, como um todo: a construção do Mapa Socioeducacional, um Percurso Curricular Emergencial e Projetos de Ensino por agrupamentos.
O Mapa Socioeducacional das escolas da Rede Municipal de Educação configura-se como um instrumento orientador para a prática pedagógica, com a finalidade de conhecer o ambiente e as condições de vida de cada estudante, em tempos de pandemia. Esse instrumento não foi proposto para ser elaborado pelas escolas a partir da Portaria Smed n. 110/2020 (BELO HORIZONTE, 2020), com o apoio das Diretorias Regionais de Educação e da Smed e nem é um mapa para a Secretária de Educação. A finalidade e o foco central do Mapa Socioeducacional são conhecer os(as) estudantes e identificar as alternativas disponíveis para que pudéssemos interagir e nos relacionar com eles em tempos de distanciamento social.
Cada escola, em diálogo permanente com as equipes das Diretorias Regionais de Educação, desenhou e elaborou as questões pertinentes ao território em está localizada, complementando as informações que já possuía sobre seus estudantes, investindo esforços na busca por dados que permitissem entender a situação em que se encontram. Temos consciência de que esse mapa não terá um fim e será permanentemente alimentado, a partir das informações que, a cada dia, o(a) professor(a) ou um(a) colaborador(a) da escola obtém sobre um(a) estudante ou outro(a). Essa ferramenta será o chão da nova escola, que se ergue em tempos de pandemia, porque será a referência da relação pedagógica professor/estudante/conhecimento.
Um Mapa Socioeducacional da condição dos/as docentes também foi feito, porque todos/as nós ficamos vulneráveis na realização da nossa profissão. O conhecimento oriundo da aplicação do mapa docente situa o sujeito professor no contexto pandêmico, para que, também, possamos tomar por base as suas possibilidades na construção desta proposta pedagógica.
Ao longo destes três últimos anos, foi criado o Inventário de Desenvolvimento Profissional (IDP), com a finalidade de construir um perfil profissional dos docentes da Rede Municipal de Belo Horizonte. Esse instrumento tem caráter informativo e formativo, concebido para ser apropriado pelos docentes, reverberando suas práticas, produções e experiências, na perspectiva de construir trilhas possíveis de formação e fomentar o desenvolvimento profissional, em sintonia com as demandas atuais. No cenário da pandemia, esse inventário passa a se associar ao Mapa Socioeducacional dos docentes, trazendo luz para que a proposta aqui dimensionada possa se efetivar em diálogo com todos os sujeitos envolvidos.
A realidade consolidada a partir desses mapas poderá, também, auxiliar a gestão das escolas, das regionais e da RME, como um todo, incluindo, ainda, as possibilidades de proposição de ações intersetoriais, fundamentais para a realização do Projeto Político Pedagógico das escolas. Foi a partir dessa ideia que decidimos por construir um sistema de informações com indicadores comuns, que foram escolhidos por todas as escolas para oferecer à Rede um conhecimento global da realidade.
As dificuldades apresentadas pela suspensão das aulas presenciais, mesmo com as normatizações vindas do Conselho Nacional de Educação e do Ministério da Educação, nos alertaram para a importância de construir um Percurso Curricular Emergencial, capaz de auxiliar o corpo docente das escolas na construção de seus planos de ensino. Buscamos, então, as parcerias já firmadas com a Universidade Federal de Minas Gerais, especificamente com as equipes que desenvolvem os Programas de Especialização em Residência Docente, do Centro Pedagógico dessa Universidade, com as equipes do Centro de Estudos em Alfabetização e Letramento (Ceale) e do Programa de Especialização da Educação Básica (Laseb). Entramos em contato com os(as) professores(as) de grupos específicos de pesquisa, formados por profissionais da Universidade e da Rede Municipal de Educação, que foram convidados a nos assessorar na construção de uma proposta de ensino com caráter emergencial, para a elaboração de percursos curriculares capazes de indicar os objetos de conhecimento essenciais em cada ano de escolarização.
Essa empreitada tão ousada e tão importante teve por finalidade criar um instrumento capaz de nortear a prática docente em um ano atípico, complexo, em que persiste o necessário monitoramento de aprendizagens específicas, bem como a promoção de aprendizagens essenciais para cada estudante, em cada fase de escolarização, de maneira a não permitir que, sem a escola presencial, tenhamos um ano perdido.
Os Percursos Curriculares foram elaborados considerando os princípios do Projeto APPIA – Integração, política pública educacional estruturante da Secretaria Municipal de Educação, desenvolvida a partir da necessidade de organizar a transição entre a Educação Infantil e os anos iniciais do Ensino Fundamental de forma contínua e harmônica. Esse projeto tem como objetivo articular e integrar as propostas pedagógicas das etapas/níveis de escolarização ofertadas pela Rede Municipal de Educação, na perspectiva da vivência escolar adequada dos processos formativos referentes às infâncias, às adolescências, às juventudes e às vidas adulta e idosa.
Partindo dessas premissas, os Percursos Curriculares foram organizados considerando três blocos de sujeitos prioritários:
a) o grupo da infância, correspondendo os estudantes de 4 aos 8 anos, referenciando-nos ao Projeto APPIA - Um Olhar para a Infância;
b) o grupo de estudantes do 4º ao 9º anos, que se encontram em fase de consolidação de conhecimentos específicos, por disciplinas dos anos finais do ensino fundamental, referenciando-nos ao Projeto APPIA - Horizontes da Adolescência;
c) o grupo da Educação de Jovens e Adultos (EJA), considerando as fases dos processos de alfabetização e/ou de certificação, referenciando-nos ao Projeto APPIA - Consolidando Projetos de Vida.
Nos capítulos seguintes, esses Percursos Curriculares serão apresentados de forma detalhada, com orientações para que sejam tomados como referências, por professores(as) e equipes de coordenação pedagógica, para a construção de propostas de ensino pelas unidades escolares, observada a autonomia pedagógica de cada instituição, conforme explicaremos no eixo III.
Queremos salientar que os Percursos Curriculares de objetos de conhecimento essenciais apresentados nos capítulos deste livro são uma referência. Não significam, especificamente, uma proposta curricular, como geralmente se fala, já que um currículo escolar é muito mais do que um percurso curricular que define objetos de \ conhecimento essenciais.
Este eixo diz respeito, necessariamente, à ação específica das equipes de professores(as) das escolas na elaboração dos projetos de ensino para atendimento sistemático emergencial dos(as) estudantes, numa perspectiva quase personalizada ou desenhada para atender agrupamentos específicos de discentes. Consideramos que a elaboração de tais projetos será um processo de construção coletiva e de muito engajamento na dinâmica escolar. Esse pode ser considerado o grande desafio desta pandemia, porque significa o momento de reinvenção da relação pedagógica de uma escola presencial para uma possibilidade de ensino híbrido.
Para isso, inicialmente, toda a equipe de profissionais das escolas, coordenada pelo Conselho de Coordenação Pedagógica, pelo coordenador/a pedagógico/a geral e pela Direção Escolar, deverá se alinhar com as intenções e perspectivas educacionais desejadas. Nesse momento, a leitura e o estudo dos dados coletados no Mapa Socioeducacional serão prioritários para o entendimento do cenário global das condições sociais, materiais e de saúde dos(as) estudantes e para que os agrupamentos de estudantes sejam organizados a partir de condições específicas e semelhantes que forem detectadas e que melhor favoreçam o atendimento pedagógico.
Essas condições permitirão definir como os(as) estudantes poderão ser acessados e qual tecnologia de mediação deverá ser utilizada. Nessa fase, será possível definir como organizar as interações, seja por meio digital, por meio de redes sociais ou aplicativos de mensagens instantâneas, seja por meio de materiais impressos, encaminhados via correio às casas dos/as estudantes ou entregues às famílias na porta das escolas. Isso significa que as antigas turmas podem ser modificadas, porque o foco deve ser a possibilidade de interação e de reciprocidade desses(as) estudantes com os(as) professores(as). Esse será o primeiro desafio, porque implica que toda a organização de trabalho da escola se modifica ou pode se modificar, caso haja muita diferença entre as condições socioeducacionais entre estudantes.
A partir dessa “nova” organização, novos agrupamentos de docentes também poderão ser definidos, para favorecer a construção dos planos de ensino e de tudo o que se associa a eles, como: os roteiros de estudo, as sequências didáticas, os formatos de atividades a serem realizadas, assim como definições relativas aos tempos de reciprocidade esperados entre um roteiro e outro enviado ao(à) estudante, critérios de monitoramento, entre outros.
Definidos com base nos objetos de conhecimento previstos para cada ano de escolaridade, esses roteiros de estudos deverão ser concebidos como trilhas de aprendizagem: conjuntos de atividades organizadas em sequências didáticas complementares entre si, a serem propostas aos(às) estudantes, com o objetivo de permitir a evolução gradual e autônoma da aprendizagem dos objetos de conhecimento e o desenvolvimento de capacidades/habilidades elencados nos Percursos Curriculares.
Trata-se, portanto, do planejamento de uma sequência de atividades que deverá apresentar aos(às) estudantes os objetivos/conteúdos referenciados nos percursos curriculares, além das competências e habilidades que estarão presentes nas propostas didáticas, para que eles(as) possam alcançar o que for delimitado como objetivo de ensino e aprendizagem. Isso significa que a riqueza dos roteiros de estudo estará nas mesclagens de propostas de ação didática, a serem desenvolvidas de forma crescentemente autônoma pelos(as) estudantes, o que, certamente, viabilizará a progressão das aprendizagens ao longo do processo de reorganização dos calendários escolares de 2020 e de 2021. Será por meio da realização desses roteiros pelos(as) estudantes que a arte de Comênio se efetivará.
Uma proposta curricular é rica pela natureza das atividades propostas a partir dos planejamentos criados pelos(as) professores(as) e pelas escolas. É rica, também, porque envolve o conjunto das competências, habilidades e valores presentes no processo de escolarização, na globalidade das atividades propostas para que se efetivem as aprendizagens dos objetos de conhecimento selecionados.
A proposta curricular deste plano de ensino emergencial ficará emoldurada pelas trilhas de aprendizagem propostas aos(às) estudantes pelas equipes das escolas. Entretanto, é muito importante frisar a necessidade de que os planos de ensino elaborados pelas unidades escolares mantenham um diálogo constante com o rol dos objetos de conhecimento previstos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018), pelo Currículo Mineiro (MINAS GERAIS, 2018) e pelas Proposições Curriculares da Rede Municipal de Educação para a Educação Infantil (BELO HORIZONTE, 2012), para o Ensino Fundamental (BELO HORIZONTE, 2010) ou para a Educação de Jovens e Adultos (BELO HORIZONTE, 2014, 2016). Sem esse diálogo, teremos uma proposta incompleta, incapaz de favorecer o devido acompanhamento do crescimento cognitivo dos/as estudantes e de sua capacidade de realizar as ações previstas nos processos de escolarização presenciais para cada faixa etária e de desenvolvimento.
Assim sendo, acreditamos que a proposta apresentada define os direitos de aprendizagem e auxilia os(as) professores(as) na ação de elaborar roteiros para a organização dos planos de ensino e das sequências didáticas. A diversificação e a criatividade dos coletivos de professores(as), na proposição das atividades e ações pedagógicas definidas nos roteiros de estudo, determinam a abrangência curricular desta proposta. Isto é, a ação didática dos profissionais da educação será concretizada a partir da relação pedagógica escolar pretendida, da mediação proposta na definição do quê, do porquê, do quando e do como ensinar. Uma proposta curricular define, ainda, a organização escolar, uma construção social que tem interfaces com escolhas e seleções, define prioridades no tempo e no espaço, articulada ou não a aspirações e expectativas da sociedade, da cultura nacional e dos territórios onde as escolas estão inseridas.
Assim, perguntas importantes devem fazer parte das reflexões das equipes de professores(as) e coordenadores(as) das escolas, na definição do como serão as interações com os estudantes.
a) Em que ponto do processo de aprendizagem o(a) estudante está, o que ele(a) precisa saber e como é possível acessá-lo(a) e ajudá-lo(a)?
b) O que deve ser trabalhado nesta condição de pandemia?
c) O que se pode esperar do(a) estudante, em termos de conhecimentos, habilidades e competências escolares nessa condição?
d) Como é possível monitorar as realizações sistemáticas do/a estudante em relação às aprendizagens adquiridas?
e) É possível organizar uma sistemática de verificação do que está sendo proposto aos(às) estudantes no processo de ensino e o que conseguem realizar?
f) É possível organizar uma documentação pedagógica comprobatória do que foi oferecido como atividade de aprendizagem aos(às) estudantes e do que conseguiram, de fato, realizar?
A existência de um percurso curricular, com objetos de conhecimento previstos para cada ano escolar, faz com que seja possível compor roteiros de atividades que podem ser realizadas com distanciamento do professor, de modo a permitir a avaliação do que o/a estudante aprendeu, do que deixou de aprender e do que já consolidou e sistematizou.
O terceiro eixo deste programa de reinvenção da escola convida os(as) professores(as) a elaborar e criar roteiros de atividades, mas a novidade está nas possibilidades desses roteiros se estruturarem, de modo que possam ser realizados pelos(as) estudantes de maneira autônoma. Será sumamente necessário, então, o investimento de tempos no planejamento pedagógico dessas trilhas de aprendizagem, que serão os instrumentos mais importantes nas interações remotas, porque serão a base daquilo que o estudante precisa realizar e entregar de volta ao(à) professor(a). Cada roteiro tem objetivos, conteúdos, habilidades e competências específicos a serem trabalhados e monitorados, como garantia de que as aprendizagens se concretizarão. Os tempos de realização dos roteiros pelos/as estudantes serão definidos e monitorados pela equipe de professores(as) da escola.
Para a elaboração dos roteiros, os(as) professores(as) tomarão como pontos de partida os Percursos Curriculares e os objetos de conhecimentos de cada fase de desenvolvimento, que devem ser organizados em sequências didáticas, que deverão indicar: a) os objetos de conhecimento a serem abordados; b) os objetivos do roteiro; c) as atividades propostas para o alcance desses objetivos; d) as habilidades, as competências previstas para a realização das atividades; e) o formato esperado para a devolutiva do(a) estudante ao(à) professor(a), que comprovará a realização das atividades propostas.
É importante salientar que a organização do trabalho pedagógico deve ser um ponto importante de toda essa ação. Como os(as) estudantes estão distantes dos(as) professores(as) e os roteiros serão a ponte para a realização do ensino híbrido, eles devem ser bem estruturados, a fim de que os(as) estudantes tenham clareza do que se espera que realizem, de como deverão estudar e/ou se organizar para conseguir realizar as atividades propostas, quais são os conhecimentos que devem demonstrar que aprenderam. Os roteiros podem ser organizados de maneira criativa, tomando sempre como base os ensinamentos de Comênio no exercício da nossa arte de ensinar e levando em conta as condições de produção das atividades pelos(as) professores(as), de acesso e recepção pelos(as) estudantes e o lugar das famílias nesse processo, conforme as informações obtidas pelo Mapa Socioeducacional de cada escola.
Os(as) estudantes devem saber que a devolução das atividades no tempo certo, definido pela escola, será um dos critérios de avaliação e de promoção fase a fase, o que possibilitará aos(às) professores(as) não somente a manutenção de vínculos pedagógicos com os agrupamentos de estudantes, como auxiliará no delineamento de uma avaliação diagnóstica. Assim, ao elaborar as atividades a serem ofertadas, as escolas precisarão construir e encaminhar orientações precisas às famílias e aos(às) estudantes sobre a melhor forma de interação com os roteiros.
Toda a comunidade escolar deve conhecer os eixos dessa nova forma de realizar o ensino e o(a) estudante precisa ser estimulado(a) a evoluir dentro de uma trilha de aprendizagens, até cumprir a totalidade de tarefas propostas, entendendo que a realização de umas é pré-requisito para o avanço para outras, de tal forma que a realização de um roteiro indique a possibilidade de iniciar uma nova fase, simulando a passagem de fases em um jogo. Um roteiro, uma entrega, outro roteiro, outra entrega, de modo que o acompanhamento se faça por meio direto de entregas para a avaliação das aprendizagens, organizadas em uma coletânea, um dossiê de atividades realizadas.
A esse “dossiê” chamaremos de Portfólio Escolar Anual, um instrumento fundamental nos processos de avaliação contínua, pois permite organizar os registros sobre o processo de aprendizagem e facilita o acompanhamento da evolução do desempenho dos(as) estudantes na realização das atividades propostas. Para tanto, sugerimos que as equipes de professores(as) de cada agrupamento de estudantes interajam entre si para elaborar roteiros únicos de trabalho, incluindo as diferentes atividades propostas, de modo que o(a) estudante entenda o que deve realizar e respeite o prazo definido de entrega de cada conjunto de ações solicitadas.
Importantes, também, nesse processo avaliativo, são os feedbacks das aprendizagens, a serem dados pelos(as) professores(as) aos(às) estudantes e seus familiares. Quando se assume um ensino mais articulado com as aprendizagens de cada estudante, torna-se fundamental dar feedbacks (ou devolutivas) permanentes e sistemáticos. Isso porque pretende-se que o(a) próprio(a) estudante tenha noção exata do que se espera dele(a), daquilo que precisa aprender para realizar as atividades e as tarefas propostas. As orientações dos roteiros devem ser capazes de esclarecer para o(a) estudante o que ele(a) já consegue realizar remotamente, evidenciar o que já adquiriu e aprendeu e o que ainda não sabe ou não demonstrou saber, o que dá conta de fazer sem a ajuda de um(a) professor(a).
E mais, essa organização deve ser capaz de identificar aquele(a) estudante que consegue fazer sozinho/a, o(a) que é capaz de usar conhecimentos incorporados e o(a) que ainda precisa de ajuda para realizar as atividades propostas, mesmo que essa ajuda seja de uma pessoa adulta próxima ou de um(a) irmão(ã) mais velho(a), que se encontra em uma fase mais avançada de escolarização. São orientações que nem sempre eram necessárias no dia a dia da sala de aula presencial, mas que, no ensino remoto, são fundamentais para que o(a) estudante consiga se situar nas tarefas que são propostas e para que os familiares ou pessoas adultas que estão no papel de mediadores(as) possam se situar.
Um ensino personalizado também altera o ofício de estudante porque traz a necessidade de que ele(a) se conscientize do que deve fazer e se torne responsável pelo seu aprendizado, conforme os níveis de autonomia que é capaz de construir, observadas as necessidades de orientação e acompanhamento pertinentes a cada faixa etária. Essa nova organização deve considerar a necessidade de auxiliar os familiares nesse acompanhamento, permitindo construir uma parceria entre escola e família.
Ao mesmo tempo, o feedback dos(as) estudantes na reflexão sobre si próprios e seus aprendizados cria chances de que se tornem fonte de conhecimento para os(as) professores(as) e a escola, tendo em vista a organização de novas atividades e estratégias de ensino. Nessa ação, tomar como referências um objeto de conhecimento, a estratégia proposta, o resultado da aprendizagem ou a sua ausência favorece a reflexão para a criação de novas alternativas e estratégias de ensino na busca pelas aprendizagens plenas.
Em síntese, a ideia central desta proposta envolve uma nova organização de trabalho pedagógico, com centralidade nas informações obtidas no Mapa Socioeducativo. Esse ponto de partida indicará critérios para a organização de agrupamentos de estudantes e de professores, conforme suas condições materiais e sociais, que determinarão as melhores formas de acesso e interação entre eles e com as famílias. A partir desse conhecimento e tendo como referência nos objetos de conhecimento essenciais apontados pelos Percursos Curriculares, os(as) professores(as) criarão roteiros de atividades a serem realizadas pelos(as) estudantes remotamente, usando ferramentas digitais ou analógicas, livros didáticos, baterias de exercícios, plataformas digitais ou qualquer outra estratégia didática capaz de compor sequências didáticas para cada grupo de estudantes.
Essa organização deve prever prazos para a realização e a entrega das atividades pelos estudantes, além de apresentar a definição dos tempos para os feedbacks dos produtos das aprendizagens pelos(as) professores(as). Sugere-se que, a cada atividade proposta, o(a) estudante realize uma ação concreta, que evidencie os objetivos pedagógicos almejados, a fim de que a produção possa compor o Portfólio Escolar Anual, capaz de permitir processos futuros de controle e/ou avaliação de aprendizagens. Utilizamos aqui a imagem da teoria dos jogos, que estimula os sujeitos a serem desafiados a passarem de fases, demonstrando, em cada uma, o progresso no jogo.
Acredita-se que cada escola deverá se organizar de forma diferente, em razão das diferenças entre os mapas socioeducacionais de cada território. As equipes de professores(as) das escolas também poderão se organizar de formas diferentes. Podem, por exemplo, criar pequenos grupos de professores(as) para atendimento de grupos de estudantes ou organizar agrupamentos de estudantes sob a responsabilidade de um(a) professor(a), que atue como orientador(a) ou mediador(a), para acompanhar os roteiros criados pelo grupo de professores(as) de anos de escolaridade específicos. As escolas, no uso de sua autonomia, têm liberdade para se organizar conforme as necessidades evidenciadas pela realidade dos estudantes e dentro das possibilidades concretas da estrutura da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. Esses arranjos podem ser discutidos, caso necessário, com o órgão central da Smed e/ou com representantes das Diretorias Regionais de Educação, nos aspectos de apoio demandados.
Pois bem, apresentamos essas ideias para começarmos um trabalho. Como dissemos no início, estamos vivendo um momento inusitado e ninguém tem respostas definitivas, mas vale arriscar, experimentar, tentar o melhor que pudermos, porque o nosso estudante merece o melhor de nós. Mãos à obra!